Tudo começa com o objeto. Quando digo objeto tenho a pretensão de guiar este escrito com a amplitude que esta palavra possui. Quando digo objeto, quero me referir ao que está sendo analisado no momento da ação. Ou seja, refiro-me sempre ao centro de todas as questões, a algo que foi delimitado como fonte geradora da matéria prima para o início de algum trabalho.
Depois desta pequena observação sobre o objeto, podemos seguir. Com o objeto já escolhido, é preciso ater-se ao valor secundário que damos a ele. Justifica-se secundário através da explicação: este valor não precisa estar vinculado de forma direta a função que objeto tende a exercer, por natureza, em seu campo de ação. Este valor nos vale como uma reinterpretação do objeto. Ocorre quando o objeto passa a ter mais funções do que as previamente deliberadas, adquirindo importância maior em nossas vidas, ampliando seu campo de ação. Essa importância está, por sua vez, relacionada aos valores secundários que agregamos ao objeto. O objeto, munido do que foi dito, torna-se uma interface de nós mesmos. Com isso, e dentro deste processo, o objeto passa por um período de personificação. Ganha um novo nome, cores, odores, sons e interações.
Neste momento do processo é que podemos diferenciar “ponto de vista” e “memória”. Na personificação o objeto passar uma razão de nossa memória e não um ponto de vista que formulamos sobre ele. O ponto de vista é sempre estático ou fisicamente móvel. Ele está sempre relacionado ao modo (forma) que vemos as coisas (ou o objeto) e não como as sentimos. O ponto de vista pode até surgir agregado a um sentimento, mas este jamais poderá ser fantasioso. Explico: não participam da formação do ponto de vista nossas emoções, a parte subjetiva de nossa visão sobre as coisas. Se isso nos ocorre é pelo fato de inconscientemente já estarmos transferindo para esta nova visão fragmentos de nossa memória. Fragmentos que já foram mergulhados dentro de nossas sensações e criações energéticas internas, consequentemente modificados, fantasiados, e agregados a novas e diferentes funções. Da formação da memória, participam todos os nossos pontos de vista (forma) e o valor (sentimento) que somamos a eles. São nestes terrenos férteis que surgem as lembranças como produtos. Produtos que, neste estudo, denomino interfaces.
As interfaces, ou seja, um grande aglomerado interpretativo e decodificador que, rapidamente, adicionamos aos objetos, terminam por nos ajudar ou prejudicar em nossa comunicação com os outros. O fato é que, geralmente, os objetos aos quais nos referimos em aberto, são rotineiros, comuns. Mas não semelhantes. A diferença entre eles existe, pois construímos de forma diferente a nossa estrutura emocional. Este é um dos fatores que nos torna único perante os outros. Então, terminando sendo nossas interfaces portadoras de uma melhor comunicação sobre o que somos. São capazes de nos diferenciar das pessoas em segundos. Exemplos: como são contraditórias nossas sensações e lembranças e do primeiro beijo, transa, passeio no parque, filme ou teatro. Podemos pensar também em nossos “ursinhos” de pelúcia, com quem dormimos até hoje, na blusa preferida e no pedaço de papel escrito. A casa em que nascemos ou a música mais especial que nos lembra aquele momento “x” com aquela pessoa “y”. Somos capazes de pensar e definir esses objetos com velocidade, sem falar na capacidade de se transportar para eles com exuberância e detalhes. Essas são nossas interfaces. Nosso piso firme, nosso eterno regar.
O problema que pode nos ocorrer e nos ocorre está relacionado ao choque entre duas interfaces. A partir do momento que o objeto se torna uma interface ele passar a ter sua própria poética e beleza. Adquire sua memória, atrelada a sua história. Ou seja, duas pessoas que vivenciam certa situação vinculada ao mesmo objeto vão produzir interfaces diferentes sobre o mesmo. Neste momento, o choque entre elas pode ocorrer. Premeditando isso, as duas personagens envolvidas passam pelo período de medo e frustração para com suas próprias interfaces. É o medo de ter sentido além do que, de fato, ocorreu. Faz parte deste momento a sensação de dúvida e o eterno questionar. Uma interface pode tanto juntar uma ou mais pessoas como separa-las para sempre. Ter lembranças antagônicas é natural. Mas se o é, por que continuamos a desejar que todos sintam, pensem, relembrem e desejem como fazemos? Por que não aceitamos com facilidade a diferença de valor atribuída às coisas? Por que precisamos que nossa interface prevaleça? Eu não sei a resposta para essas perguntas, pois também me comporta desta forma.
Este escrito não tem a pretensão de ser esclarecedor nem de criar uma teoria. Tem como objetivo principal descrever meus pensamentos, tentando amenizar minhas torturas. São muitas as minhas interfaces e, muitas vezes, me vejo como também vejo outras pessoas, sem saber como agir sem defendê-las. Nossa memória nos faz assim. Nossa memória tem trilha sonora, cheiro de chuva ou pão quentinho, se preferir. Agora, nosso pão não é igual nem muito menos nosso gosto musical.
As interfaces tornam os objetos únicos e de extremo valor. Fazem do sujeito um incompreendido, pois ao mesmo tempo em que nos ajudam a expressar o que sentimos nos afastam de que não o sente. Terminam sendo mais um agrupador, um gerador de rótulos e clubes. As interfaces são como nossos irmãos que vieram de onde viemos, mas não vão seguir junto conosco. É o claro e o escuro.
Ninguém sabe nem nunca vai compreender o valor que cada um de meus livros tem para mim. Até hoje, não conheci ninguém que ouvisse a história da viagem que fiz de navio e, em certo momento dela, me julgasse sentimental demais. Não sei o que representa para minha família a quantidade papel que eu tenho guardado. Os inúmeros relógios quebrados, blusas rasgadas e agendas passadas. Não sei o que as pessoas pensam de alguém que ainda usa as roupas que comprou quando possuía dez anos a menos dos que tem hoje. Tenho uma almofada em formato cilíndrico que dorme comigo desde que eu me entendo por gente. Tenho uma estante repleta de bugigangas e uma coleção de carros que nunca dei valor. Mas se me tiram os carros, me tiram um pedaço interno, um fragmento de minha memória. Tenho fitinha do senhor do bom fim, máscara de carnaval, pedaço de toalha de bar, rolha de vinho e tampinha de refrigerante. Tenho um mundo dentro do meu mundo. Todas essas coisas poderiam ser jogadas fora, doadas e etc. Eu continuaria de pé. Com toda certeza, teria uma vida feliz. Mas eu não seria o mesmo. Nem as minhas interfaces.
Nenhum comentário:
Postar um comentário