terça-feira, 10 de novembro de 2009

Seu celular ficou comigo.

Dentro do ônibus ele pergunta com dificuldade a mãe: "mãe, nesse bar tem fanta uva? eu queria tanto tomar uma fanta uva". A resposta da mãe passa desapercebida e, mais uma vez, ele: "mãe, eu estou pedindo com carinho, eu mereço tomar um fanta uva, né?". Descem no mesmo ponto que eu. Mas só percebo isso, quando na rua, constato que a voz que ouvia vinha de um homem crescido, alto, maior que sua própria mãe. Ela diz: "filho, se você se comportar na consulta, mesmo que não tenha fanta uva no bar, eu vou ao supermercado e compro". Ele anda na frente e ela atrás, um pouco mais devagar. é uma senhora. passo por eles, atravesso a rua primeiro. Do outro lado, vejo ele antecipar-se, correndo para não perder o sinal, dizendo aos carros que era preciso esperar sua mãe. NO MEIO DA RUA. ela vem, pequena, lenta e no calor. Acompanho seus movimentos alerta. Salvos, escolhi não saber se eles entrariam no Pinel ou na Universidade Federal do Rio de Janeiro.

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O outro, dentro deste mesmo ônibus, era torto. andava torto. mas era bonito. e parecia "normal". vestia-se como se vestem os bonitos. seus movimentos pareciam calculados e para toda pequena conquista, um esforço enorme. pensei em ajudá-lo na hora de descer do ônibus, no mesmo ponto já citado, mas não tive coragem. não sei, não tive. ele completou sua jornada com louvor.

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Debaixo do chuveiro, constatou: só se pode lavar as costas por completo quando não se toma banho sozinho.

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Barulho de porta fechando. Ele entra na sala portando uma bolsa vermelha e um guarda-chuva aberto, apoiado no ombro esquerdo. Caminha em direção ao altar. Sorri. Faz cara de surpreso, como se tudo fosse novo. Inesperado. Sobe as escadas. Desce as escadas. De um lado, do outro. Repete o movimento. Escuta, na direita baixa, a voz de um homem que, inesperadamente, interrompe sua ação. Responde: "para hoje". Volta a caminhar pelo espaço. Repousa a bolsa no chão, ao lado da cadeira. Fecha o guarda-chuva. Pendura o guarda-chuva no braço da cadeira, no mesmo lado em que se encontra a bolsa. Senta. Analisa as pessoas que estão presentes. Pega a bolsa. Com a bolsa no colo, diz: "eu esperava de você apenas coisas assim: avenca, samambaia, roseira. Mas nunca essa coisa enorme, que me obrigou a abrir todas as janelas e depois as portas. Pouco a pouco, me obrigou a derrubar todas as paredes e também o teto para que você pudesse crescer livremente. Pois você jamais cresceria se eu a mantivesse presa em um vasinho pequeno". Quando diz "enorme" paradoxalmente exibe um isqueiro pequeno, fazendo chama. Procura dentro da bolsa. Acha. Repousa novamente a bolsa no chão, no mesmo lugar. Levanta-se da cadeira. Senta na cadeira a foto que na bolsa achou. Ela tem como figura sua própria face em um fundo azul, céu. Veste-se de uma personagem - o pai - e, para a foto, coloca em palavras tudo aquilo que não foi esquecido. A personagem some ao fim de seu discurso. Pausa em suspensão. Segurando a foto, senta-se na cadeira. Analisa as pessoas que estão presentes. Pega a bolsa. Guarda a foto na bolsa. Abre o guarda-chuva. Levanta-se. Apoia o guada-chuva no ombro esquerdo, pois segura a bolsa com a mão direita. Acompanha com a cabeça o passar dos ônibus. Entristece. Canta "Casa Pré-fabricada". Ensaia chorar. Desiste. Sorri. Movimenta-se pelo espaço. Sobe e desce as escadas. De um lado para o outro. Repete o movimento. Toma sua reta e sai.

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